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In Between

  • Foto do escritor: Ana Carolina M.
    Ana Carolina M.
  • 5 de out. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 19 de out. de 2019

Todas as pessoas são obrigadas a encarar a vida e a morte, certo? Mas nem todas sabem lidar com ambas. O fato é que precisamos encará-las. Crescemos acreditando que a morte é a pior das situações, o pior dos finais, mas a verdade é que, em alguns casos, a morte é a melhor coisa, pois na morte há o descanso, a paz, o fim do sofrimento. E muito maior do que a dor de perder alguém, é a dor de ver alguém existir num estado entre a vida e a morte. Pois eu te digo que existe esse estado entre estar vivo e estar morto, e é aterrorizante, é feio de ver, é devastador de sentir, porque diferente da morte, esse estado traz mais sofrimento. É como boiar em águas frias, que machucam a pele e congelam até os ossos. É como querer poder nadar nessa água para sair dela e se salvar, mas a única coisa que acontece é que você boia, e boia e boia, não afunda para a morte, nem nada para a salvação, você simplesmente boia. Aprendi isso vendo minha mãe. Aprendi isso vendo a pessoa que eu mais amo boiar nessas águas frias e cortantes, sem poder fazer nada a respeito. Não existe mais a possibilidade de nadar até a margem e se salvar, e eu não posso boiar com ela, não posso entrar nessas mesmas águas e segurá-la até que seu corpo comece a afundar. Eu só posso assistir da margem enquanto ela boia sozinha. E a única salvação agora é afundar, e eu quero que ela afunde, pois só assim ela vai sair desse estado entre vida e morte. Afinal, o que é pior do que dizer que uma pessoa não está nem viva, nem morta? Pois ela não está nenhum dos dois, ela não vive e não morre..... ela boia. É como velar uma pessoa antes que ela esteja de fato morta. É como sentir a dor devastadora da morte misturada com o sofrimento agonizante da vida. É existir em um lugar onde seu corpo não te pertence mais, onde você não tem mais controle dos seus membros, onde você não decide mais o que quer e o que não quer. É desejar a morte a cada segundo e odiar a vida todos os dias. É não saber mais quem é você e quem são as outras pessoas. E ela não me reconhece mais. Minha mãe, a pessoa mais amável, bondosa e maravilhosa que eu já conheci, a pessoa que mais me cuidou, me protegeu, me segurou... ela não sabe mais quem eu sou, ou sabe? Não sei. Ela me olha com os olhos perdidos, olhos de quem boia em águas geladas, olhos de quem quer afundar, mas não consegue. Eu conversei com ela ontem. Disse que se ela quiser ir embora, pode ir. Que eu sei o quanto ela está sofrendo, o quanto ela está cansada, sei que tudo e mais um pouco foi tirado dela. As forças, a esperança, a vontade de continuar lutando, a própria vida já foi tirada dela, mas nada foi dado em troca, nem a morte. Ela perdeu a vida para existir no nada, para estar perdida num lugar que eu não alcanço, que eu não consigo chegar. Eu não sei se a mente dela já se perdeu também, e isso me deixa inquieta, me deixa angustiada. O quanto dela ainda sabe o que está acontecendo, quanto dela ainda sabe quem sou eu, quanto dela ainda entende quando eu seguro a sua mão e choro? E ela mudou. Não gosta que fiquemos segurando sua mão, nem que passemos os dedos no seu cabelo, num gesto de conforto e de carinho. Ela mudou. O pouco movimento que ainda lhe resta serve só para tentar puxar as cobertas, arrancar algum acesso ou tirar nossa mão de perto dela. A temperatura corporal mudou, suas mãos e pés agora são frios. Seu cheiro mudou, e eu enjoo com esse novo cheiro. É o cheiro que vai ficar impregnando nas minhas narinas para sempre, assim como a visão dela que está carimbada no meu lobo frontal. Eu vejo o seu corpo, ou que sobrou dele, eu sinto o cheiro que sai da sua boca quando ela fica entreaberta. Sinais de um corpo que não nada, nem afunda, mas boia. E eu nunca imaginei que a imagem que um dia me trouxesse mais conforto fosse da minha mãe morta. Mas agora, nesse momento, essa imagem simboliza paz, a paz que minha mãe merece. Esse estado no qual ela se encontra é mais feio do que a morte. É cheio de dor, inquietação, cheiros, tubos, acessos, fraldas, agulhas, medicamentos, noites em claro. Ela foi reduzida a um corpo fraco, manchado, cansado e agonizante. Isso não é justo! Mas qual o senso de justiça nessa situação? Nenhum, provavelmente. A justiça não deve ser discutida nesses casos, mas é impossível não questionar o porquê disso, o porquê de ser com ela, o porquê de ser assim, um sofrimento tão longo, uma passagem tão sofrida. Não tenho respostas para essa pergunta, e perguntas sem respostas incomodam mais do que a própria resposta. Nunca vou saber, muito menos entender a razão disso tudo. E eu sei que vou sempre ouvir que “não é pra entender”, “não é pra questionar”, “é assim e pronto”. Mas eu não me contento só com isso. Vou viver o resto da minha vida sem essa resposta, sem saber porque minha mãe foi jogada nesse espaço entre viver e morrer. Porque ela não teve a chance de simplesmente descansar, sem ter que passar por sofrimento tão profundo. Porque ela foi obrigada a boiar sozinha nessas águas frias. Só sei que vão existir dias em que vou querer afundar também, e eu vou ter que aprender a lidar com eles, vou ter que aprender a viver uma vida sem ela. Viver uma vida incompleta, sem uma parte minha, sem a maior e melhor parte de mim.


Ana Carolina M.


São Paulo, 23 de Dezembro de 2018.



 
 
 

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