Meia rosa ❤
- Ana Carolina M.
- 7 de jul. de 2020
- 4 min de leitura
Mais uma vez me vejo na necessidade de escrever sobre ela, sobre a perda dela.
Mais uma vez tudo isso pode soar muito repetitivo, mas a verdade é que pensar no processo todo da perda e encarar isso de frente, me faz de certa forma aceitar a partida.
Ganhei um livro de uma grande amiga essa semana, livro da médica paliativista mais humana e incrível que já “conheci”, entre aspas pois infelizmente ainda não tive o prazer de conhecê-la pessoalmente. Essa médica se chama Ana Claudia Quintana Arantes, e eu já havia lido seu primeiro livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, livro esse que me fez chorar de soluçar, que mexeu com as minhas entranhas, que colocou o dedo na ferida mais profunda de todas: a perda da minha mãe. Li o livro alguns meses após ela ter falecido, e pra mim foi uma experiência profunda, de ver o rosto dela na minha mente durante cada linha do livro todo.
E agora mais uma vez me vejo lendo outro livro dessa médica incrível, livro com histórias de morte, de perda, de partidas e de adeus. Sinônimos. Todos difíceis de lidar, de aceitar, afinal é difícil ver alguém partir e acompanhar esse processo de adoecimento, de esperanças, de derrotas e principalmente da certeza final, a de que é o fim, o começo do fim.
E você já ouviu falar que algumas pessoas só morrem quando resolvem tudo que precisa ser resolvido? Eu já, e acredito nisso. Acredito que morremos quando estamos “prontos”, não fisicamente prontos, pois um corpo pode estar fisicamente derrotado, esgotado e apodrecido, mas o fim do corpo físico não é o mesmo fim da consciência. Me entenda: uma pessoa em coma pode continuar sobrevivendo por muito tempo, mesmo que sua condição física seja incompatível com a vida. Acredito que temos nosso merecido descanso quando não existem mais “pontas soltas”, e nem sempre entendemos as pontas soltas dos outros. Eu não entendia a da minha mãe, até que alguém me ajudou a entender. Uma pessoa que não era da família, mas que foi extremamente importante pra dar a resposta que precisávamos.
Quando a condição física da minha mãe não era mais compatível com a vida começamos (eu e minha família) a nos perguntar O QUE FALTAVA. Tivemos aquela conversa com ela, sobre ir embora e descansar, que todos aqui ficaríamos bem, e que ela tinha feito tudo que era preciso nessa vida: criou uma filha, ajudou todos que precisavam, distribuiu amor aos quatro cantos. Pronto mãe, você pode ir agora. Mas ela não foi. E dia 24 de Dezembro de 2018 uma pessoa me “deu uma luz”, uma luz que eu não esperava. Me disse para chamar a pessoa mais improvável do mundo pra ver minha mãe e se desculpar com ela, e naquele exato momento eu pensei “que bobagem, logo essa pessoa?”, mas agradeci a sugestão. Fui pra casa achando a ideia um tanto quanto descabida, e no dia seguinte, 25 de Dezembro, a ideia voltou à minha mente e começou a incomodar, e finalmente eu pensei “porque não?”. Entrei em contato com quem precisava e acertei a vinda dessa pessoa, pedi urgência, o tempo já tinha acabado e estávamos vivendo dias sem horas, minutos e segundos... e pior do que contar cada segundo final no relógio é viver sem a noção do tempo.
Essa pessoa veio no dia seguinte, perto das 20hr da noite ele chegou, ficou sozinho com ela. Eu nunca vou saber o que foi dito (ou não) naquele quarto. Eu nunca vou saber se as desculpas que poderiam ter sido ditas há anos foram ditas naquele hospital no silêncio da partida dela. Mas coincidência ou não, um dia depois ela descansou.
E me senti tão culpada por não estar com ela no fim. Senti como se ela tivesse me “traído” por não ter me esperado chegar lá, por não ter sido na “minha vez”, ao mesmo tempo em que eu estava morrendo de medo de acontecer comigo lá. Consegue entender? Pra mim era obrigação minha estar junto dela nesse momento final, já que foi ela quem me deu a vida. Mas que mãe quer morrer na frente do filho, e que filho quer morrer na frente da mãe? De qualquer forma na minha cabeça ela gostaria de estar comigo, de sentir minha presença quando chegasse a hora. Mas entendo agora que era pra ser assim, nossa despedida já tinha acontecido há alguns dias, o que mais eu poderia fazer? – Escolher a roupa dela.
Minha mãe odiava meias, usava muito raramente e não conseguia dormir com uma meia no pé, “Deus me livre” dizia ela. Entretanto, nos últimos dias em casa ela sentia muito frio e estava sempre de meia... minhas meias. Todo dia eu chegava em casa e a encontrava com uma meia rosa escrito “dog” dentro de um coração, e quando ela morreu e chegou a hora de escolher a roupa - o que sinceramente é doloroso ao extremo - eu não consegui pensar em roupa nenhuma, não conseguia lembrar o que era uma calça, uma blusa, um casaco, e coube à minha tia escolher e me perguntar se eu achava que ela ia gostar daquela roupa, mas eu só tive uma certeza: a meia rosa escrito dog. E assim ela foi... linda e adorável, uma mamãe com meia rosa. E desde então amo meias rosas.
Ela foi embora sem pontas soltas, com minha meia rosa e sendo amada por absolutamente todos que a conheciam, disso eu tenho certeza.
(“ela é um lugar que será sempre dela” – Zack Magiezi)
São Paulo, 07 de Julho de 2020.
Ana Carolina M.

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